quinta-feira, maio 20, 2010

ladder beats saw


Pois, vai se andando, (expressão com potencial para ser repetida pelo menos 300 vezes no próximo mês)

Com as últimas semanas da minha existência a serem marcadas (por vezes, literalmente) pela influência de instrumentos de carpintaria e construção - primeiro um simpático serrote, depois um maléfico escadote - sou um homem novo, ou pelo menos, com peças novas.

Apetecia-me começar com um cover idiota. Podia ser com o "Tudo começou, há um tempo atrás", ou o "Tempo, volta para trás", ou simplesmente o "Oops, I Did It Again", mas na falta de recursos ou inspiração para tal fico-me por este poio literário.

A noite era negra e amarela, o bilhete para o queimódromo era o último, e a ideia de me aventurar por degraus escorregadios tentadora. A gravidade ganhou. Ao cair fiquei sentado - seguiu-se um momento único: uma vontade imensa de me deitar no chão negro, pastoso, peganhento, de composição largamente desconhecida/duvidosa do Queimódromo. A ambulância chegou. As piadas dos bombeiros começaram. "Medicina? Parece que devias era ter tirado o curso de paraquedismo!". Tum tum paa. Trepidação.
Triagem. "- Bebeu?"
"-Um bocado, mas não estava embriagado."
"-Não foi isso que lhe perguntei! Bebeu álcool?"
"-Sim"; carimbo imediato na testa de bêbado da Queima.
Radiografia: "Vai ter que elevar os braços acima da cabeça!"
(olhar confuso) "Não consigo..."
"Muito bem", diz o radiologista enquanto escreve "Doente não colaborante" no relatório.
Tecto de corredores. Gente conhecida! Gente pálida, cansada, com sorrisos!
Tiram-me finalmente do plano duro e colocam-me o primeiro cateter! Ouço cânticos angelicais que ecoam "morfina, morfina, morfinaaaaa!". Recebo tramal. :(
Segue-se a espera. Sei que estou à espera de uma ressonância. Sei que o serviço de Radiologia começa a fazer ressonâncias a qualquer instante. Sei que o pequeno-almoço dos Ortopedistas é a refeição mais importante do dia! 5 horas de pequeno-almoço depois... RMN! Transferência para a maca do serviço, transferência para a máquina, transferência para a maca do serviço, transferência para a maca onde estava originalmente. Habitualmente considero-me um indivíduo decidido, de ideias definidas. Nesse momento não me conseguia decidir: "Costas? Ombros? O que é que me vai matar de dores primeiro?". No fim suspiro "Pronto, pelo menos agora fico sossegado...", resposta do auxiliar "Ah, ainda vai fazer TAC." (música sinistra). Recuando um pouco, para a RMN propriamente dita. Digamos que uma combinação de dor, barulho, calor e a premissa muito simples de "se te mexes temos que repetir". Subitamente ir ao dentista parece um dia de Primavera.
De volta à sala das urgências, cujo tecto tão apreciei, o drama: sede. A amabilidade das enfermeiras: "TÁ A BEBER ÁGUA?! AS SUAS COLEGAS ESTÃO A DAR-LHE ÁGUA! JÁ NÃO VAI DAR!"... cena digna de comparação com os panos verdes.
Fazendo um rápido fast-forward, temos: corredor do bloco operatório, acordar da cirurgia sem ter a certeza de ter passado por lá (apesar de eventualmente estranhar a quantidade suspeita de cateteres ligados a todos os meus membros... todos).

UPA. Um serviço interessante. Provavelmente mais interessante para quem não está preso a uma cama com vista privilegiada para uma parede com um negatoscópio e um lavatório. As pessoas costumam dizer que o mais importante na vida é a busca pela "felicidade". Creio que não se referem à Dona Felicidade que estava na cama ao lado. A Dona Felicidade ressona.

Serviço de Trauma. Digno do seu nome. Como se o conforto proporcionado pelas dores constantes nas costas e pelo incómodo de não me poder mexer não bastassem, outros factores aliviantes se ergueram para tornar a minha estadia um mimo. Ponto 1: descanso. A Orquestra Nacional do Porto nada vale perante o coro mais afinado de orofaringes descaídas que tão harmoniosamente animaram os meus serões. Cama cuidadosamente escolhida ao lado da janela. Janela cujos estores não fecham, de modo a maximizar as minhas capacidades regenerativas de vegetal, ainda que a custo de qualquer hipótese de descanso a partir das 6h da madrugada. Ponto 2: alimentação. Pensava que com mais de 5 anos de experiência a lidar com comida pré-fabricada e montada in situ (ao estilo IKEA), típica de cantina e afins, poderia tolerar e quiçá apreciar a temida "comida de hospital". Ahh, doce inocência... É claro que alguém achou que o grau de dificuldade das refeições deveria passar a "Insane", pelo que passaram a alimentar-me a 0º - resultado: um auxiliar paralisado com cara de nojo ao ver a sua preciosa farda coberta de sopa regurgitada. Ponto 3: higiene. Rapidamente me habituei à ideia de que a minha privacidade e dignidade pessoais eram itens recicláveis. Tudo bem. Pormenor: obras nas canalizações, consequente corte na água - resultado: o mau hálito tornou-se o meu odor mais refrescante. Ponto 4: entretenimento. O facto de coincidir esta experiência de turismo urbano com a visita papal resultou em horas e horas de prazer televisivo. Ponto alto, programa da manhã da TVI onde numerosos artistas levaram a cabo a apresentação de um novo álbum cuja temática era justamente Nossa Senhora. Valha-nos Deus. O melhor do 13 de Maio: um envelope branco entregue em mão simbolizando a tão esperada Liberdade! ALTA!


O resto da saga fica para uma qualquer outra ocasião... que é como quem diz, para quando publicar o meu primeiro best-seller.

Frase do dia: "When we are no longer able to change a situation - we are challenged to change ourselves." by Viktor Frankl